O que são ações com voto plural e por que estão mudando o mercado brasileiro

O que são ações com voto plural e por que estão mudando o mercado brasileiro

Se você investe ou se interessa pelo mercado financeiro brasileiro, provavelmente cresceu ouvindo uma regra de ouro: “uma ação, um voto”. Essa era a base da democracia corporativa: se você e outro investidor possuíam uma ação ordinária (ON) da mesma empresa, ambos tinham exatamente o mesmo poder de voto na assembleia de acionistas.

Esse pilar da governança corporativa no Brasil mudou.

Uma transformação silenciosa, mas profunda, foi aprovada em 2021 (através da Lei 14.195) e começou a ser implementada, alterando fundamentalmente a estrutura de poder dentro das empresas listadas na B3. O nome dessa mudança é voto plural.

De forma simples, a regra “uma ação, um voto” não é mais a única opção. Agora, uma empresa pode criar uma classe especial de ações onde uma única ação pode valer por 2, 5 ou até 10 votos.

Isso soa injusto? Ou é uma modernização necessária? A verdade é que essa mudança foi uma resposta direta a um problema que o Brasil enfrentava: a “fuga” de suas melhores empresas de tecnologia (como Nubank, XP e PagSeguro) para bolsas de valores estrangeiras, como a NASDAQ, nos Estados Unidos.

Este guia completo foi escrito para o investidor leigo. Vamos desmistificar o que é o voto plural, por que ele foi criado, quais são as regras e, o mais importante, quais são os riscos e oportunidades que ele traz para você, o investidor minoritário.

O que Exatamente São Ações com Voto Plural?

O que Exatamente São Ações com Voto Plural?

Vamos começar com uma analogia simples.

Pense na assembleia de acionistas de uma empresa como uma eleição para decidir o futuro da companhia (quem será o diretor, se a empresa deve ser vendida, etc.).

  • No Modelo Antigo (Voto Singular): Cada ação ordinária (ON) que você possui lhe dá direito a um voto. Se você tem 1.000 ações e um grande fundo tem 1.000.000 de ações, o fundo tem 1.000 vezes mais poder de voto que você. Justo, pois o risco financeiro dele é maior.
  • No Modelo Novo (Voto Plural): A empresa pode criar, por exemplo, duas classes de ações ordinárias:
    • Classe A (Voto Singular): Vendida ao público geral no IPO. Cada ação vale 1 voto.
    • Classe B (Voto Plural): Mantida apenas pelos fundadores e controladores. Cada ação vale 10 votos.

O resultado? O fundador pode acabar vendendo 80% das ações da empresa (Classe A) para o mercado e levantar muito dinheiro, mas, ao manter suas poucas ações de Classe B, ele ainda detém mais de 50% do poder de voto.

Em resumo, o voto plural permite que uma pessoa ou um grupo (geralmente os fundadores) separe seu poder econômico (quantas ações possui) de seu poder político (quantos votos controla). É uma ferramenta legal para levantar capital sem abrir mão do controle total da empresa.

A História por Trás da Mudança: Por que o Brasil Adotou o Voto Plural Agora?

Essa mudança não aconteceu por acaso. Ela foi uma reação defensiva do mercado de capitais brasileiro para estancar uma “sangria” de empresas.

Nos últimos anos, o Brasil viu nascer uma safra de “unicórnios” (startups avaliadas em mais de 1 bilhão de dólares), principalmente no setor de tecnologia e finanças (fintechs). O que aconteceu quando essas empresas decidiram abrir capital (fazer um IPO)?

Elas foram embora.

Nubank, XP Inc., PagSeguro, Stone, entre outras, fizeram seus IPOs em bolsas americanas (NASDAQ ou NYSE).

Mas por que elas foram para os EUA?

O motivo principal era exatamente o voto plural. Os fundadores dessas empresas, como Mark Zuckerberg (Meta/Facebook) ou os fundadores do Google (Alphabet), queriam captar bilhões de dólares para crescer, mas não queriam entregar o controle da visão de longo prazo da empresa para investidores de curto prazo.

Mercados como os EUA já permitiam estruturas de “super-voto” (super-voting shares) há décadas. O Brasil, com sua regra rígida de “uma ação, um voto”, não permitia.

Se uma fintech brasileira quisesse fazer seu IPO na B3 (a bolsa brasileira), o fundador teria que aceitar que, se vendesse 51% das ações, ele perderia o controle da empresa que criou. Para fundadores de empresas de tecnologia, que têm uma visão de produto muito forte para os próximos 10 ou 20 anos, isso era inaceitável.

O resultado? A B3 estava se tornando uma bolsa de “velha economia” (bancos, commodities, elétricas), enquanto as empresas de “nova economia” (tecnologia) iam embora. A Lei 14.195/21, que instituiu o voto plural, foi a tentativa do Brasil de “nivelar o campo” e dizer a essas empresas: “Fiquem aqui, agora vocês também podem ter o controle protegido”.

Quais são as Regras? O Voto Plural é uma “Terra Sem Lei” no Brasil?

Ao ler sobre isso, o investidor pode pensar que virou uma “casa da mãe joana”, onde o fundador pode fazer o que quiser.

Não é bem assim. O Brasil importou a ideia, mas criou algumas “salvaguardas” (proteções) que, em tese, são mais rígidas que as americanas, visando proteger o investidor minoritário.

1. Limite de Poder: 10 para 1

A lei brasileira impõe um teto. A ação com voto plural pode ter, no máximo, 10 votos por ação. Nos EUA, essa proporção pode ser muito maior.

2. Prazo de Validade (A “Sunset Clause”)

Esta é a proteção mais importante e a grande diferença do modelo brasileiro. Nos EUA, o voto plural do fundador muitas vezes dura para sempre (ou até ele vender as ações).

No Brasil, o voto plural tem um prazo de validade inicial de até 7 anos.

  • O que acontece depois de 7 anos? As ações “super-poderosas” automaticamente se tornam ações comuns, com 1 voto cada.
  • Pode ser renovado? Sim, mas o fundador precisa da aprovação da maioria dos acionistas, incluindo os acionistas sem voto plural (ou seja, o mercado). Isso dá ao mercado um poder de “revisão” da performance do fundador.

3. Quem Pode Criar?

Uma empresa que já está na bolsa não pode, da noite para o dia, decidir que o CEO terá voto plural. A regra é clara:

  • O voto plural deve ser criado antes da empresa abrir o capital (IPO).
  • Para uma empresa já listada criar o voto plural, ela precisaria da aprovação de acionistas que representem, no mínimo, metade das ações com direito a voto.

4. Limites em Decisões Chave

A lei também impede que o “super-voto” seja usado para aprovar certos assuntos que poderiam prejudicar os minoritários, como a aprovação de contas da administração (se o minoritário discordar) ou a remuneração dos administradores.

As Vantagens Argumentadas: Por que Alguém Defenderia o Voto Plural?

As Vantagens Argumentadas: Por que Alguém Defenderia o Voto Plural?

Embora pareça estranho, existem argumentos fortes a favor dessa estrutura, focados principalmente na inovação e no crescimento de longo prazo.

1. Proteção da Visão de Longo Prazo (O Argumento do Fundador)

O mercado financeiro é, muitas vezes, “curto-prazista”. Analistas e fundos de investimento querem ver lucro neste trimestre.

No entanto, empresas de tecnologia e inovação (como a Amazon de Jeff Bezos, por exemplo) muitas vezes precisam sacrificar o lucro de curto prazo para investir pesado em pesquisa e desenvolvimento (P&D), logística ou aquisição de clientes. Essas são apostas que só dão retorno em 5 ou 10 anos.

Um fundador com voto plural pode dizer “não” à pressão do mercado por lucros imediatos e continuar executando sua visão de longo prazo, mesmo que isso signifique ter prejuízo por vários anos (como a Amazon fez).

2. Atração de IPOs de Tecnologia e Inovação

Como já mencionado, esta é a principal vantagem para o mercado brasileiro. Sem o voto plural, a B3 corria o risco de ficar obsoleta, sem nenhuma empresa de tecnologia de ponta para o investidor brasileiro escolher.

Ao permitir essa estrutura, a B3 se torna competitiva para atrair IPOs de startups, fintechs e empresas de biotecnologia. Isso diversifica a bolsa e dá ao investidor local a chance de investir nessas empresas de alto crescimento sem precisar abrir conta em uma corretora no exterior.

3. Facilidade para Captação de Recursos (Fôlego para Crescer)

Startups precisam de várias rodadas de investimento para crescer. Com o voto plural, o fundador pode fazer novas ofertas de ações (follow-ons) para levantar capital e financiar a expansão, sem o medo de que, em cada rodada, ele esteja perdendo o controle da empresa.

As Desvantagens e Riscos: Qual é o Perigo para o Investidor Minoritário?

Aqui é onde o seu sinal de alerta deve acender. Para cada vantagem, existe um risco correspondente, e o preço desse risco é pago pelo investidor minoritário (você).

1. O Risco do “Fundador-Rei” (Entrincheiramento da Gestão)

O voto plural protege o fundador genial, mas também protege o fundador incompetente.

E se a visão do fundador, que um dia foi brilhante, ficar ultrapassada? E se ele começar a tomar decisões ruins ou erráticas?

Em uma empresa normal, os acionistas poderiam se unir e votar para demitir o CEO ou o conselho. Em uma empresa com voto plural, o fundador é, na prática, indedemitível. Ele fica “entrincheirado” no poder, mesmo que esteja destruindo o valor da companhia.

2. Desequilíbrio de Poder e Risco de Abuso

Este é o risco central. O poder fica concentrado de forma desproporcional. Imagine um fundador que possui 10% das ações da empresa, mas detém 51% dos votos.

Ele pode tomar decisões que beneficiam ele mesmo em detrimento dos outros 90% dos acionistas. Por exemplo:

  • Aprovar um salário gigantesco para si mesmo.
  • Fazer a empresa comprar serviços de outra empresa que pertence ao seu cunhado (conflito de interesses).
  • Usar o caixa da empresa para comprar um jatinho particular “para a diretoria”.

3. Redução Drástica da Governança Corporativa

Governança corporativa é o sistema de “freios e contrapesos” de uma empresa (conselho, auditoria, regras) que garante que os gestores ajam no melhor interesse de todos os acionistas, e não apenas de si mesmos.

O voto plural é, por definição, uma ferramenta que enfraquece a governança corporativa. Ele remove o principal “freio” sobre o fundador: o medo de ser demitido pelos acionistas. Grandes fundos de pensão e investidores institucionais globais odeiam governança fraca, e muitos se recusam a investir em empresas com essa estrutura.

Voto Plural vs. Ações Preferenciais (PN): É a Mesma Coisa?

Não. É fundamental que o investidor brasileiro entenda essa diferença, pois estamos muito acostumados com a divisão ON/PN.

  • Ações Preferenciais (PN), como ITUB4 ou PETR4:
    • Voto: Geralmente não têm direito a voto (ou têm voto restrito).
    • Vantagem: Têm preferência no recebimento de dividendos. (Em tese, recebem mais dividendos ou recebem primeiro).
  • Ações Ordinárias (ON), como ITUB3 ou PETR3:
    • Voto: Historicamente, tinham 1 voto por ação.
    • Vantagem: Dão direito a voto e 100% de Tag Along (em caso de venda da empresa).
  • Ações com Voto Plural (A Nova Classe):
    • São um tipo especial de Ação Ordinária (ON).
    • Voto: Têm 2, 5 ou até 10 votos por ação.
    • Vantagem: Controle absoluto da empresa.

O voto plural não tem a ver com dividendos, tem a ver com poder.

Como o Voto Plural Afeta o “Tag Along” do Investidor?

Como o Voto Plural Afeta o "Tag Along" do Investidor?

Este é um ponto técnico, mas vital para o seu bolso.

O que é “Tag Along”? É o seu “paraquedas de segurança”. No Brasil, a lei garante (para ações ON) que, se o acionista controlador (o “dono”) decidir vender a empresa para um comprador, esse comprador é obrigado a fazer uma oferta para comprar as suas ações também, por, no mínimo, 80% do valor (no Novo Mercado da B3, é 100%). Isso impede que o controlador venda a empresa e deixe você “preso” com um novo dono que você não conhece.

Como o Voto Plural impacta isso?

A nova lei tentou proteger o tag along, mas a dinâmica mudou. O controlador agora pode vender o controle (suas poucas ações de voto plural) sem necessariamente vender sua grande participação econômica (suas ações de voto singular).

A lei garante o tag along para as ações de mesma espécie. O maior risco é que a definição de “venda de controle” se torne mais complexa. O ponto central é: o poder de barganha do fundador em uma negociação de venda se tornou absoluto.

O que o Investidor Leigo Precisa Olhar Antes de Comprar Ações com Voto Plural?

Agora que você entende a mecânica e os riscos, aqui está um checklist prático do que fazer antes de investir seu dinheiro em uma empresa com essa estrutura.

1. Leia o Prospecto do IPO (ou o Estatuto Social)

Isso não é opcional. Se uma empresa abriu capital recentemente (pós-2021), você precisa checar o Estatuto Social ou o Prospecto do IPO (disponíveis no site de Relações com Investidores – RI – da empresa). É lá que estará escrito, em letras claras, se existe voto plural e quais são as regras (quantos votos por ação).

2. Você está Investindo no Negócio ou no Fundador?

Ao comprar uma ação com voto plural, você não está apenas se tornando sócio de um negócio. Você está dando um cheque em branco para o fundador. A pergunta que você deve se fazer é: “Eu confio cegamente nesta pessoa para tomar todas as decisões pelos próximos 7 anos?”. Se a resposta for “não” ou “não sei”, fique longe.

3. Verifique a Cláusula “Sunset” (O Prazo de Validade)

Essa é sua maior proteção. O voto plural dessa empresa dura 3 anos? 5 anos? Os 7 anos completos? Existe alguma condição que o anule antes (por exemplo, se o fundador se aposentar)? Quanto mais curto o prazo, menor o risco de longo prazo para você.

4. Exija um “Desconto de Governança”

Poder tem preço. Se você está comprando uma ação que lhe dá menos poder e menos direitos (como uma ação de voto singular em uma empresa com voto plural), você deveria, logicamente, pagar menos por ela.

Empresas com estruturas de controle fechadas (governança fraca) historicamente negociam com um “desconto” em relação a empresas com governança exemplar (“uma ação, um voto”). Não pague o mesmo preço por menos direitos.

Uma Nova Realidade de Risco e Oportunidade na B3

Tipos de ETFs para o Investidor Brasileiro: Construindo seu Portfólio

O voto plural é a maior mudança na lei das sociedades anônimas do Brasil em décadas. É um “mal necessário” para alguns, e um “retrocesso perigoso” para outros.

  • A Oportunidade: Permite que a B3 finalmente atraia as empresas de tecnologia e inovação que estavam fugindo para os EUA, dando ao investidor brasileiro acesso a ativos de alto crescimento.
  • O Risco: Concentra um poder perigoso nas mãos de poucos fundadores, diminui a proteção dos minoritários e cria o risco de gestores incompetentes se perpetuarem no poder.

Para o investidor leigo, a lição é clara: a responsabilidade aumentou. Não basta mais olhar apenas os lucros e os dividendos. Agora, é obrigatório entender a estrutura de poder da empresa. O conhecimento é, mais do que nunca, a sua principal ferramenta de proteção. Antes de comprar uma ação, pergunte-se: “Nesta empresa, a minha voz será ouvida? Ou estou apenas pegando carona com um rei?”.

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